
Longe estava eu de saber que, passado tanto tempo, afinal iria mesmo encontrar uma forma de concluir decentemente o meu diário sobre a pandemia, que parece estar para ficar. Aconteceu tudo no passado sábado, quando menos esperava. Só não lamento não ter registado o que se passou em vídeo ou fotografia porque há momentos que não precisam. Há momentos que ficam para sempre na nossa memória, como uma cicatriz (boa) que transportamos connosco para onde quer que vamos. Este foi um desses momentos. E foi tão simples!
O dia de sábado começou como tantos outros sábados, sem se passar nada de anormal. Eu acordei maldisposto, a minha cara-metade idem, e os miúdos, ainda não eram oito da manhã, choravam os dois, cada um para seu lado. Os três meses que passámos em casa serviram para muita coisa, mas também podiam ter servido para encontrar a cura para as birras. Não foi o caso. Julgo que ainda estamos todos, à excepção do mais novo, em adaptação à normalidade que tanto queríamos, e que agora, se calhar…
Quando a poeira assentou e as lágrimas finalmente secaram, tinha chegado a hora dos desenhos animados, e por isso suspirei de alívio. Faço agora um pequeno flashback ao dia em que as creches reabriram, só para falar da confusão que me fez o silêncio que encontrei quando cheguei a casa, naquela manhã. O silêncio foi tal que nem os passarinhos, que tanta e tão boa companhia me haviam feito, se faziam ouvir. Não gosto da palavra sepulcral, mas não tenho adjectivo melhor para descrever aquele momento.
A casa estava tão calada que até das birras tive saudades.
E das correrias, dos gritos e dos saltos. Das brigas para dormir a sesta e do regabofe no chão da sala. De chegar a meio do dia e não conseguir andar em casa sem tropeçar em qualquer coisa. De serem onze da noite e, por alguma arte mágica, e depois de ter aspirado a casa duas vezes, ainda conseguir pisar um bago de arroz. De inventar e reinventar formas de não me passar da cabeça e manter a calma, quando tudo à minha volta parecia desmoronar-se (afinal, eram só pessoas a serem pessoas, qual era o drama?). De tentar trabalhar com o ruído constante vindo da sala, por muito que a minha mulher passasse a vida a dizer “menos barulho, que o papá está a trabalhar”. De perceber que tinha, como ainda tenho, muitas coisas para melhorar, como pai e como homem. De perceber, novamente, que os meus filhos me ajudam a ser uma pessoa melhor, com os seus defeitos e virtudes. De perceber, finalmente, que os defeitos, como as virtudes, fazem parte de nós, e temos de aprender a viver com eles.
Não houve nenhuma transformação de carácter em nenhum de nós, nem julgo, sinceramente, que tenha mudado assim tanta coisa. Mas que houve muita instrospecção, lá isso houve. Acredito que serviu para melhorar o que estava errado e que, no dia em que todos voltemos à “normalidade”, o façamos como pessoas melhores: mais unidas e menos irritadas. Mais calmas e com menos pressa. Com mais paciência. Pessoas que falem menos e ouçam mais. Pessoas que olhem menos para os ecrãs, e mais para os olhos. Melhores cidadãos, com mais respeito pelos outros e pelo meio que nos rodeia. Pessoas mais simpáticas e menos prontas para mandar o próximo à badamerda. Pessoas que, enfim, se lembrem de que não estamos cá para sempre, e as quezílias desnecessárias são isso mesmo.
Agora, que somos todos super-heróis (leia-se, andamos todos de máscara), vamos aproveitar o ninguém saber quem somos para agirmos melhor, para sermos mais tolerantes. Depois, quando já não precisarmos das máscaras, tirá-las-emos mais confiantes, mais sorridentes, melhores. Não vemos bocas nem narizes nem bochechas, mas vemos o mais importante, que são os olhos. Vamos parar para olhar. De uma vez por todas.
Dou agora por terminada esta diarreia mental e avanço, finalmente para o que vos queria dizer hoje.
Tudo o que se passou nos últimos três meses e picos ficou resumido num momento que durou cerca de quatro segundos, que foram uma eternidade. Depois de uma excelente iniciativa, que não partiu de mim, fomos ter, no final desse último sábado, ao Jardim da Alameda, em Faro. Foi lá que se encontraram alguns amigos que não se viam há demasiado tempo. Não puderam ser todos, mas foram alguns, e isso foi muito bom. Até a companheira diária dos miúdos, vulgo educadora, esteve presente, confirmando aquilo que de mais importante temos na vida: os afectos.
Ao chegar, o meu filho mais velho (faz cinco anos em Novembro), viu o seu grande amigo Gabriel. A reacção imediata foi agarrar-se à minha perna, pois apesar de saber ao que ia, não esperava, certamente, a química que passou pelo seu pequeno corpo, numa reacção física ao sentimento mais nobre de que somos capazes enquanto seres humanos: a amizade. Com um pequeno empurrão meu, e uma palavra de encorajamento, lá foi ele a correr na direcção do amigo. O resto, passou-se em câmara lenta.
Dois miúdos que não se viam há quase quatro meses abraçaram-se, num descarregar de sentimentos pouco provável em tão tenras idades (ou pouco expectável, pelo menos). No abraço que os dois amigos deram coube tudo o que se passou no demasiadamente longo período que o precedeu. No abraço que eles deram, couberam as lágrimas inevitáveis das mães que os observavam. Naquele abraço, no seu abraço, no abraço deles, coube o mundo todo.
Coubemos todos, naquele abraço.
E durante as duas horas que se seguiram, fomos felizes.
Adorei!
E, como partilhamos e vivemos tanto do que falas… como tanto desejamos que as pessoas tenham a capacidade de parar para pensar e optem por pensar um pouco nos outros, no mundp que as rodeia. 🙏
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E fazemo-lo tão pouco… Obrigado minha querida!
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Grande Rui!
Tenho medo que o meu comentário possa estragar a beleza deste teu texto que, diga-se de passagem, está irrepreensível – aliás, como já nos vens habituando amigo.
Parabéns e obrigado!
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Obrigado, Manuel! Abraço
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