Vrum, vrum, vrum!

DSC00323

O domingo passado foi o último dia da concentração de motos de Faro, a já mítica reunião de motards que se juntam na capital algarvia durante três dias de ráteres, jolas e algumas mamocas ao léu. Já na sua trigésima oitava edição, tem primado pelas melhorias na organização e pelo cartaz cada vez pior (eu, nas poucas vezes que participei do evento, queria era ouvir rock, mas isso sou eu. Nada contra a Gisela João, que canta tão bem, a mecinha!). Mas eu, como é óbvio – ou deveria ser – não venho falar-vos de motos.

O domingo passado, para além de ter sido o último dia da concentração de motos de Faro, foi um domingo normal. Nada de especial aconteceu depois das nove da manhã, hora em que já tinha tomado a minha banhoca dominical e me encontrava preparado para exercer as minhas funções de Pai. A história que vos trago passou-se, precisamente, ANTES das nove da manhã, pois eu decidi ir correr naquele domingo, que foi o último da concen… OK, já chega.

Consegui levantar-me às sete da manhã para ir correr. Isto, só por si, já merecia um artigo. Mas, ai de mim!, que também não estou aqui para falar de corrida, nem de running, que é a mesma coisa que corrida, mas soa PIOR (a cereja no topo do bolo é quando me perguntam se “queres ir fazer um running?” em vez do tradicional “queres ir correr” ou mesmo do mais afoito “queres ir mandar uma corridinha?”). Já agora, este princípio das inglesices até teria a sua piada, se o aplicássemos noutras situações, como por exemplo: “Queres ir tomar uma beer?” ou “Estou tão cansada, hoje não me apetece fazer love” ou “Vou dar um dive à praia.” ou ainda “Onde é que vamos dinner hoje?”. E, agora sim, a história! Ou a story, como preferirem.

Passavam uns minutos das sete e trinta da manhã quando comecei a minha corrida como faço sempre: a andar.

Fui subindo a minha rua lentamente, a tentar perceber se estava ou não muito calor, se tinha sido boa ideia mudar de percurso e, ainda, que música se adequava mais aos longos minutos de suor e lágrimas que se seguiriam. Ainda não tinha feito duzentos metros quando me deparo com a primeira surpresa do dia: Um Fiat Punto cinzento.

Nada de especial tinha o carro daquela marca italiana, tirando o rapaz que, de rompante, saiu de lá de dentro como se a viatura tivesse começado a arder. Rapidamente concluí que não era o caso, pois consegui descortinar uma melena de caracóis louros no lugar do condutor. Ora, qual não é a minha surpresa quando a melena de caracóis louros, vulgo menina, também decide sair do carro de repente, qual retrato do coração que acabou de ser trucidado por uma salva de metralhadora. A menina, depois de fechar a porta com tanta força que esta voltou a abrir-se, e ao reparar que eu vinha a andar, estacou. Não sei se por vergonha, se por espanto (eu sou um tipo giro, é normal este tipo de reacção no sexo oposto – e por vezes até, no mesmo sexo!). Mas rapidamente se esqueceu da minha figura de deus grego e voltou a sua fúria para o rapaz que a havia metralhado. Nisto, a rapariga abre a goela e começa a gritar uma carrada de impropérios tão vasta que eu pensei duas vezes na variedade do meu vocabulário. Gritava como se ninguém a conseguisse ouvir, nem o rapaz que continuava, paulatinamente, a descer a rua e afastar-se daquele furacão histérico.

Decidi começar a correr, não fosse sobrar para mim. A questão é que a rua é muito íngreme, e longa. Logo, a minha decisão desfez-se mais rapidamente do que a velocidade a que a miúda regurgitava palavrões na direcção do seu amado (?). Continuei então a andar e, passados uns metros, olhei para trás, como quem não quer a coisa. Ela já estava perigosamente próxima dele. Mas eu tinha saído para correr, e não para ver uma novela da TVI ao vivo.

Posto isto, estuguei o passo e continuei a minha demanda pela forma física ideal, naquele domingo de julho.

Uns metros mais à frente, outro casal. Ou par, melhor dito. Um par de amigos. Eu, como já ia mais acelerado, não consegui ver bem os dois. Mas um deles não escapou ao meu olhar sóbrio e repleto de orgulho domingueiro. O rapaz tinha um ar triste e desorientado, e podia jurar que lhe escorria pelos beiços um pouco de baba, mas isso pode ser fruto da minha imaginação. Ao passar por eles, não consegui ficar indiferente ao calçado do que vinha mais à direita e, por conseguinte, mais próximo de mim. O garoto tinha uns sapatos que, juro por tudo o que é mais jurável, eram feitos de barro. De início, não consegui perceber como raios o jovem conseguia andar. Mas depois, e ao passar bem perto dele, finalmente consegui resolver o mistério de tão curioso calçado: eram umas chanatas tão cagadas, mas tão cagadas, que formavam, literalmente, um sapato à volta dos pés do moço. Dada a proximidade a que passei daqueles dois festivaleiros (chamar-lhes-ia motards, mas não tinham moto), a decisão de não respirar por uns segundos foi bastante fácil. E foi assim que os deixei para trás: a suster a respiração.

Passaram-se cerca de trinta minutos em que nada de surpreendente se passou. Isto se descontarmos a lentidão com que me desloco em passo de corrida. Ah, e a paisagem da zona ribeirinha que serviu de pano de fundo para a minha corrida. É daqueles cenários que, por muitas vezes que os vejamos, nos conseguem sempre surpreender. Afinal, a beleza natural é a mais bela, não acham?

Depois de subir o meu Némesis, também conhecido como a subida do Montenegro, a andar cada vez mais devagar, dei por terminada a minha corrida. Contudo, ainda faltava um bom quilómetro até chegar a casa, e as surpresas ainda não tinha acabado.

Chegado a alcatrão nivelado, comecei a respirar melhor. Passei o braço pela testa para limpar o suor, e falhei redondamente, pois esqueci-me que tinha o chapéu posto, e lá foi o dito para ao meio do chão, comigo a resfolegar qualquer coisa. Nada acontece por acaso, e a prova disso foi o moitão de gomas que vi distribuído pela estrada, à minha frente. Dei por mim a pensar no porquê do abandono daquelas guloseimas e, qual poeta inveterado, imaginei logo um arrufo entre crianças em que toda a gente ficou a perder.

Um que outro pensamento filosófico mais tarde, comecei finalmente a descer a Bento Jesus Caraça, nome da rua na qual tinha dado início ao meu exercício domingueiro e que me tinha trazido tão caricatos eventos, que eu agora vos tento reportar da melhor forma que consigo.

A meio da descida, fiquei duplamente mais descansado. Primeiro, porque ia a descer e só faltavam cerca de duzentos metros para chegar a casa. Segundo, porque o casal maravilha continuava a sua discussão amorosa, mas desta vez dentro do carro! Ao passar por eles, pensei em untá-los com um pouco da minha experiência e dizer-lhes que não valia a pena estarem chateados, que namorar é melhor que discutir, e que deviam era estar a dar cabo dos bancos do Fiat (e da suspensão também), em vez da novela que pareciam teimar em não acabar.

Mas não o fiz, e passei por eles sem dizer nada.

Quase a chegar ao meu destino, e já a sorrir com a lembrança das histórias que tinha para contar, vejo um tipo ao fundo da rua a deambular na minha direcção. Sim, a rua é bastante larga, mas eu consegui logo perceber que ele se estava a dirigir a mim. E tinha razão.

Não tardei em perceber que se tratava de um daqueles mangantes que são sempre os últimos a sair dos festivais. Todo vestido de preto (com a camisola do evento, pois claro!), de cabelo espetado com metade da bisnaga de gel e, claro, de botas. Estamos em julho, é naturalíssimo usar-se botas (o meu filho mais velho que o diga: vai todos os dias de botas prá escola, para “correr melhor, Papá”). O jovem não se fez de rogado e, sem qualquer tipo de preliminares, foi directo ao assunto: “Oh amigo! Onde é que fica a rotunda do aeroporto?”.

Surpreendido pela pergunta, pois a dita cuja fica, mais metro menos metro, trezentas medidas na direcção oposta, respondi isso mesmo: “Amigo! É mesmo ali atrás de si, só tem de voltar para trás!”. Nisto, o rapaz ficou confuso, ou pelo menos aparentou ficar. Resolveu mudar de estratégia e perguntar: “Onde é que fica o Montenegro?”. Eu, já a tentar evitar um sorriso demasiado evidente, respondi que ele se encontrava, efectivamente, no Montenegro! A confusão na sua cara transformou-se em total dispersão. O cérebro do rapaz parou de funcionar por uns segundos, com a minha resposta.

“Oh amigo, mas então eu quero ir pró Montenegro!”, reafirmou com alguma veemência.

“Meu caro, você ESTÁ no Montenegro!”, retorqui, com um tudo-nada de veemência.

“Mas, mas, mas… Então e a rotunda do aeroporto, onde fica?”, voltou a perguntar.

“Já lhe disse, uns quatrocentos metros atrás de si!”, bufei.

“Oh amigo, você tem a certeza que isto é o Montenegro?”, re-perguntou o rapaz.

“Tenho pois! Vivo cá há muitos anos!”, re-retorqui eu.

“Epá, que chatice, é que eu não sei o nome da rua, só sei que é no Montenegro!”, rematou, desiludido.

“Então não o posso ajudar, meu caro. Mas nem tudo é mau: pois está no sítio certo!”, encorajei.

“É verdade, amigo, tem razão! Agora é só encontrar a rua!”, diz ele, já em debandada.

Com isto, faço a curva para a Rua José Saramago, satisfeito por estar quase em casa. Quando comecei a subir as escadas para o prédio, o mangante ainda me gritou lá do fundo, com um ar de felicidade plena:

“Oh amigo, a rotunda do aeroporto é por aqui, não é?”!

 

 

Até para a semana.

6 Replies to “Vrum, vrum, vrum!”

  1. O que eu me ri a ler esta tua pequena, grande maravilha! Obrigada por este momento.
    A tua escrita é sempre um entretém espetacular, um momento pelo qual se espera ansiosamente e que acaba sempre por chegar e superar as expectativa…

    Liked by 1 person

Deixe um comentário