Querido filho,
Há algum tempo que não te escrevia, e a aventura em que hoje embarcaste parece-me merecedora de umas palavras aqui do teu velho. Ainda não completaste quatro anos e já tens na tua algibeira o bilhete de autocarro para ires, com os teus colegas de escola, ao cinema! Ficas já a saber que és um privilegiado, pois o teu pai já tinha três ou quatro pilosidades no buço quando foi ver o Quem Tramou Roger Rabbit, no Cinema São Mateus, em Elvas. Mudam-se os tempos…
E eu não queria que eles mudassem.
Mas a minha vontade, desta feita, de nada vale.
No outro dia, quando te fui buscar à creche, ou “cólinha” como tu lhe chamas, a tua educadora entregou-me um papel e disse-me: “Papá, na próxima quarta-feira vamos ao cinema, tem aqui a autorização para assinar”. Fosse eu um pai normal, se é que existe tal espécie, e a minha resposta teria sido um bem-disposto: “A sério? Que fixe! Vão divertir-se tanto!”. Mas não. A primeira resposta, que não tardou mais do que meio segundo a sair da minha boca foi: “Não vão não. Ou pelo menos ele não vai! A primeira vez que ele for ao cinema será comigo!”, rematei com alguma indignação.
Nisto, a educadora olha para mim com ar de quem me quer chamar à Terra, pois rapidamente se tornou óbvio que eu estava na Lua. À medida que ela foi falando, sempre com argumentos de quem é profissional e, para mal dos meus pecados, mulher, eu fui descendo daquele satélite da Terra. Fi-lo a muito custo pois, por alguma razão que ainda não percebi, parecia ter uma corda a puxar-me para trás, qual orgulho de pai ferido a queimar os últimos cartuchos de um tempo que já não é. Os Xutos é que tinham razão, e é mesmo verdade que “o que foi não volta a ser, mesmo que muito se queira”.
Agora vou fazer uma pausa nesta carta, pois o teu irmão mais novo começou a chorar porque não consegue dormir. Eu diria que, em vez de chorar, seria mais fácil… dormir! Mas cada um com as suas manias.
(tique-taque, tique-taque)
Silêncio novamente, estou de volta.
Estava a falar da notícia que a tua educadora me deu. Pois bem, devo admitir que fui mais forte que a corda, assentei os pés no chão e acabei por concordar com tudo o que estava a ouvir. Não foi muito difícil, pois era tudo verdade. De qualquer forma, não há problema, pois estou convicto de que estará a ser uma experiência que depressa esquecerás. Assim, o pai pode levar-te ao cinema e fazemos de conta que nunca tinhas ido. Boa?! Boa.
Levo-te ao cinema, mas a sério! Não é cá com amigos e outras distracções, e não vamos de autocarro. Também não vamos comer pipocas num copo de Super Bock – daqueles dos festivais de Verão -, mas sim num balde como deve ser. E para acompanhar bebes uma aguinha, pois é certo que a tua mãe há-de ler esta carta, e não quero ficar em maus lençóis, se é que me faço entender. O filme pode ser o que tu quiseres, mas eu é que escolho! Isto de sermos amigos é muito bonito, mas a hierarquia também é. Há ainda a hipótese de escolheres tu o filme, mas nesse caso não comes pipocas. Deixo ao teu critério.
Agora vou fazer mais uma pausa na escrita desta missiva, que retomarei depois de voltares: preciso de mais informação sobre a tua não-ida ao cinema.
(tique-taque, tique-taque)
Voltei, e estou eufórico!
Não só te assustaste quando as luzes se apagaram – ao ponto de te agarrares à educadora e chamares pela mamã -, como disseste que foste ver o Homem-aranha. Ora, o pai sabe que é mentira, pois o filme era sobre animais que falam! E sim, não faz mal teres mentido (desta vez), e ainda por cima insistires, quando renovei a questão. Isso só revela que não gostaste por aí além da experiência, o que aumenta a probabilidade de te esqueceres de tudo e, neste caso, ainda mais depressa, abrindo caminho para a nossa sim-ida ao cinema, ou primeira ida, ou verdadeira ida, como preferires.
Filho, espero que consigas entender o egoísmo do teu pai. Sabes uma coisa? Antes de nasceres, tive uma conversa com alguém mais experiente do que eu. É aquilo que costumo fazer, quando quero aprender. Falámos de ti e de como seria, ou de como eu queria que fosse, a nossa relação. Eu sonhei isto e aquilo, e depois sonhei ainda mais um pouco. Mas a pessoa com quem falei, tal como a tua educadora veio a fazer, não teve meias medidas em esfrangalhar o meu sonho e tudo o que de bonito ele tinha. Afinal, o que resta a um pai senão sonhar com passar momentos marcantes com o seu filho?
Aquilo que o pai não percebeu foi que uma coisa não invalida a outra! Há coisas que só aprendemos com a experiência, mas como sabes o pai gosta de estar sempre bem preparado. Isto da parentalidade não é nenhuma brincadeira, e no dia que me deres netos irás entender do que estou a falar. Bem sei que já estou a sair do contexto outra vez, mas então? Isto de escrever com o coração tem muito que se lhe diga. Estava a falar de cinema e de pipocas, vê lá!
Estar-te-ás a perguntar: “Mas que raio te disse aquela pessoa que esfrangalhou o teu sonho e tudo o que de bonito ele tinha?”. Ainda bem que perguntas, filho. A resposta é bastante simples:
O que essa pessoa fez foi abrir-me os olhos. Deu-me, literalmente, uma chapada de realidade. E a realidade é muito simples: não há nada que alguma vez consiga mudar a individualidade de cada um. Nem a minha, nem a tua. Para além disso, tu podes nunca vir a gostar das coisas de que eu gosto – cinema incluído! Podes não gostar de guitarras, ou de livros ou de mundos de fantasia. Podes não gostar de hobbits (LIVRA-TE!). Podes não gostar de jogos de tabuleiro ou do Super Mario (BIS!). Podes não gostar de tanta coisa! E isso não vai fazer mal, pois o que importa – perdoa-me a lamechice – é que gostes de mim, e vice-versa. Se isso for verdade, tudo o resto não interessa.
Agora, uma coisa te garanto: gostes do que gostares, o pai estará sempre aqui, para gostar contigo (se assim o entenderes). Em alguma coisa havemos de coincidir, caraças!
Se por alguma estranha vontade do destino, não coincidirmos em nada, paciência.
Mas não contes com uma mesada.
(Até para a semana!)
Maravilhoso como sempre, Rui!
Lia e entendia-te tão bem. Sentia a tua angústia, que eu mesma sentiria se alguém me roubasse as munhas primeiras experiências, aquelas que sonhei partilhar em exclusividade.
Adorei! Continua… please!! 😍
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Obrigado querida Michelle. Tenciono continuar 😉
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